A BNCC – Base Nacional Comum Curricular – limita as discussões sobre preconceito. A própria palavra é encontrada apenas 54 vezes no documento – isso se incluídos os “preconceitos linguísticos”. A crítica partiu do professor Eduardo Oliveira Miranda, do Departamento de Educação da Universidade Estadual de Feira de Santana, durante a abertura do Endoce, I Encontro Docente de Currículo Escolar do 6º ao 9º ano, na noite da última sexta-feira, 6. O evento, encerrado no sábado, aconteceu no Centro Estadual de Educação Profissional Áureo de Oliveira Filho.
O pesquisador falou a professores da Rede Municipal de Educação, que atuam no Ensino Fundamental II – do 6º ao 9º ano, sobre o tema “Decolonialidade e educação: perspectivas curriculares”.
Ao destacar a produção científica dos professores, o secretário de Educação, Marcelo Neves, defendeu a importância do debate democrático entre educadores e estudantes. “É relevante que a escola seja um cenário de discussões ricas, do livre pensar. Nesta esfera, devemos falar sobre a história de formação do nosso povo, pois isto nos leva a pesquisar e a pensar mais”, instiga Marcelo.
De acordo com o professor Eduardo Oliveira Miranda, se se fizer uma busca pela palavra “racismo”, são encontrados apenas seis resultados. “A BNCC fala muito de preconceito e cabe à escola o papel de evitar e não trabalhar com estes ‘preconceitos’. Só que o preconceito no Brasil tem um nome bem demarcado, que é o racismo. O feminicídio é um tipo de preconceito que vem de uma concepção heteropatriarcal. Mas é preciso dar os nomes. Se a gente deixa tudo como ‘preconceito’, apaga-se tudo que precisa ser discutido e aprofundado”, enfatiza.
Eduardo Miranda também apresentou a concepção de educação descolonial X decolonial. De acordo com ele, o primeiro termo indica uma educação crítica e já emancipada de suas heranças coloniais. Já o segundo, se refere a um processo que ainda busca por essa emancipação e criticidade. “Por isso, a escolha pela segunda palavra: ainda não nos livramos por completo do nosso legado colonial”, atesta.
O professor destaca que a BNCC se propõe a ser uma base comum para toda a população. “Mas, como tratar todos os aspectos culturais de um país a partir de uma base que tenta formar todos a partir do mesmo segmento cultural? Não é uma perspectiva de trabalhar com a diversidade, mas sim de tornar homogênea a formação de todos os estudantes”, problematiza o palestrante.
“Nós somos uma sociedade racista, heteropatriarcal e capitalista. A partir disso, começamos a entender a escola dentro desses três vieses e como isso influencia a formação dos alunos, dos professores e do currículo escolar. Uma perspectiva decolonialista vem criticar essa educação meramente técnica, que fornece mão de obra do trabalhador para o capitalismo e apaga toda a sua cultura”, pontua Eduardo.
A BNCC orienta o que os alunos devem aprender na Educação Básica e serve como referência para os currículos escolares. Mesmo que a desigualdade de gênero seja uma realidade brasileira, o documento não inclui a discussão no rol de “aprendizagens essenciais que todos os estudantes devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica”.
Em março de 2018, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, IBGE, divulgou o estudo “Estatísticas de Gênero - Indicadores sociais das mulheres no Brasil”. Ele apontou que mulheres ganhavam 25% a menos do que os homens, quando considerados os rendimentos médios mensais de todos os trabalhos – ainda que elas sejam maioria no mercado de trabalho dentre os que detêm diploma de nível superior.
Troca de experiências
O Endoce foi organizado pelo Grupo de Currículo do Ensino Fundamental da Seduc como uma forma de celebrar os professores e professoras enquanto pesquisadores e a sala de aula enquanto espaço de criação e intervenção. O objetivo é a partilha de experiências entre os profissionais, socializando relatos dos trabalhos desenvolvidos nas escolas. A manhã do sábado, 7, foi marcada por essas trocas.
Algumas das atividades trazidas pelos professores dialogam com a proposta do debate da noite anterior. O projeto “Contos Africanos”, orientado por Fernanda dos Santos Silva, professora de Língua Portuguesa do Centro Integrado de Educação Municipal Joselito Falcão de Amorim, foi uma dessas atividades. Envolveu os estudantes das turmas de 6º ano da unidade de ensino.
Fernanda conta que escolheu a temática por conta da necessidade de valorização da cultura africana pelos próprios estudantes, sendo que, muitas vezes, isto não é um tema abordado em sala de aula ou simplesmente fica restringido ao Dia da Consciência Negra. De setembro a novembro, eles pesquisaram sobre a África e sobre os escritores que foram trabalhados, buscando articular as narrativas dos contos às suas histórias de vida.
“O rio das quatro luzes”, de Mia Couto, foi um dos contos estudados. A história se passa em Moçambique e traz a uma breve narrativa sobre um menino que não vê alegria em viver. Suas angústias e aparente desprezo pela vida foram alvo de debate durante as aulas. “Qual era o motivo de sua tristeza? As condições precárias, dos problemas e conflitos, um país em guerra. Essa criança se sente o tempo todo em aflição. E daí surgiram as discussões sobre os problemas que eles próprios passam”, destaca a professora.
Ao fim da experiência, na culminância do projeto, alguns estudantes apresentaram também seus relatos – em forma de texto ou oralmente – de situações de discriminação racial pelas quais eles passaram. Um deles, conta Fernanda, disse ter ido a um restaurante de uma rede norte-americana com um colega – ambos sem farda. Eles queriam recarregar o celular ali, mas os funcionários do local chamaram a polícia.
“Discutimos o porquê da importância de se conhecer a cultura africana; para entender todo esse processo de como os negros foram trazidos para o Brasil e escravizados, e como o racismo perdura até hoje. Então eles próprios, a partir da vida deles, perceberam que o racismo persiste, infelizmente, e que é preciso fazer algo para mudar isso”, defende Fernanda.
Debates diversificados
Jaciene de Andrade Santos, professora de Inglês da Escola Municipal Jonathas Telles de Carvalho, tratou da aprendizagem dos verbos modais (should, can, must) em torno da temática “what’s feminism”. Mas este foi só um dos aspectos abordados a partir do tema. Os alunos foram apresentados a Chimamanda Adichie, escritora feminista nigeriana.
Além de uma pesquisa individual sobre a autora, os estudantes assistiram ao vídeo de seu discurso “We should all be feminists” (Devemos todos ser feministas, em português), legendado em português, protagonizaram uma roda de conversa sobre os sentidos atribuídos ao ser mulher na sociedade, refletindo sobre as próprias experiências e as relatadas pela autora, entre outros pontos.
A partir das discussões realizadas, a turma foi dividida em grupos. Cada um ficou responsável por um tema a ser aprofundado e apresentados em cartazes – frases sobre os direitos das mulheres, personalidades marcantes, leis de defesa às mulheres, glossário feminista. Os cartazes foram socializados em sala e depois expostos nos corredores da escola.
“Senti o envolvimento dos estudantes – e o meu próprio – em toda a sequência pedagógica. Algumas alunas, já engajadas no debate feminista, tiveram espaço para se expressarem melhor com os colegas, tirarem dúvidas mutuamente. Alguns meninos, inicialmente silenciosos na roda de conversa, fizeram perguntas e contribuíram na socialização dos cartazes”, comenta a professora Jaciene.
Professores lançam livros
Jaciene Santos lançou o livro de sua autoria “Textos em trânsito: Machado de Assis e o projeto literário nacional”, na noite da sexta-feira, 6. Cláudia Gomes, professora da Escola Municipal Doutor Clovis Ramos Lima, também lançou um livro de autoria própria – Condado Poético.
A professora Jozelia Araujo, diretora do Departamento de Ensino da Seduc, destacou a importância de momentos como os proporcionados pelo Endoce. “É algo sublime por que é a continuação do que iniciamos há alguns anos, as formações. Busquemos fazer outros Endoces; aperfeiçoá-lo. Quem sabe envolver os professores desde a Educação Infantil à EJA, e deixar um legado para a Rede. Refletir sobre a prática nos tira do comodismo. Faz a gente pensar, repensar, planejar, rever”, defende.
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